Uma mensagem do Futuro

Sentada na pedra, de frente para o por do sol, naquele monte que ela adorava ir sozinha ou acompanhada, ela observava o horizonte. Era difícil fazer os outros verem a beleza da simplicidade da vida através dos seus olhos, mas ela nunca se importara. Ainda menina, falava com a chuva, as estrelas e os animais. O seu coração era tão grande que lhe causara uma deformidade física. Metade dele ficava fora da cavidade torácica; exposto e vulnerável. O pulsar do sangue dentro dele era visível sob a sua pele delicada. 

Ela tamborilava os dedos nos joelhos, como se o entardecer estivesse atrasado para o seu encontro com ela. Não era o momento em que o último risco de sol desaparecia atrás das montanhas que ela apreciava mais. Eram os tons dourados na base das nuvens, aquela camada alaranjada que contrastava com o topo das colinas, mesmo quando o sol já  não podia ser visto. E não era só. Aos poucos, o manto azul escuro da noite ia fechando o espetáculo, empurrando para o adormecer a lembrança de mais um dia. E quando o último vestígio dourado se perdia e depois o azul claro ia se tornando noite, ela se deitava na rocha e esperava pelas estrelas.

Duas horas se passariam até que ela normalmente retornasse para casa, mas não naquele anoitecer. A menina que nunca havia chorado antes, que havia lutado para sobreviver ainda antes de nascer e tinha o coração maior o que o peito, iria se atrasar. 

Olhando para o céu à espera de Helen, Katarina, Stephanie, Daisy, Sofia, Luna e todas as suas estrelas amigas, o que ela viu foi um vulto sobre o seu rosto. Ela se sentou depressa, encarando aquele corpo na noite. O grande coração se encheu de agonia. O vulto se parecia com o de um gigante, mas gigantes não existem, já lhe dissera sua mãe. Nem Papai Noel ou Coelho da Páscoa, mas ali, bem do lado dela estava sim um gigante. E ela, que quase nunca sentia medo de nada, sentiu-se apavorada e indefesa. 

"Não tenha medo, não vim lhe fazer mal" disse uma voz grave e doce, como a de um ancião. Mas nem assim ela se sentiu melhor. "Só vim lhe trazer um aviso". A pausa se prolongou e a menina não lhe perguntou nada. "Um aviso do Futuro" completou ele, sentando-se ao lado dela com dificuldade. A rocha era grande o suficiente para cinco pessoas, mas o volume dele ocupara todo o espaço fazendo a pequena menina se afastar até a borda. Ela queria se levantar, mas havia algo nele que a impedia de se mexer além daqueles poucos centímetros para o lado.

O gigante vulto suspirou tão prolongadamente que ela pensou que ele não fosse parar nunca. "Normalmente não fazemos isso, trazer mensagens do Futuro. Todos dizem que querem saber, mas é mentira. A maioria, se soubesse, desistiria do presente e isso só nos daria mais trabalho" disse ele, cansado do peso da sua própria existência. Apesar de assustada, ela queria saber o que o Futuro tinha a lhe dizer. Não lhe ocorrera que gigantes que trazem mensagens do futuro também não existiam. "Eu quero" disse ela sem perceber. O vulto se virou para ela e ela pôde ver os seus olhos. Eram como duas estrelas no infinito, intensas e reluzentes. 

"Você vai sofrer uma profunda perda, mas não tema, não desanime e resista à tentação do abismo. Ele vai se apresentar a você como um anjo da salvação, o único refúgio possível, mas você precisa passar por ele. Vai ter que se apoiar em superfícies escorregadias, traiçoeiras e muitas vezes assustadoras. Suas mãos não vão suportar o peso do seu corpo, mas você vai encontrar rochas apoiar os seus pés. Você terá que contornar o abismo, agarrando-se à parede fétida e úmida da encosta." 

A menina sentia as mãos suando sobre a rocha onde se sentara, como se no abismo já estivesse. "Vai ser um longo caminho por onde você vai encontrar outras almas como a sua, tentando sobreviver ao mesmo abismo. E elas tentarão lhe puxar porque sabem que você é a mais forte de todas e vão querer pegar uma carona nas suas costas. Não permita. Por mais que o seu coração queira ajudar, este caminho deve ser percorrido exclusivamente por cada um. Não é o seu dever estender a mão para ninguém e se alguém lhe oferecer ajuda, não aceite nem menos. Você vai ter que ser forte, mais forte do que já foi, mas menos forte do que você vai se tornar." 

Ela não podia imaginar uma situação em que recusaria ajudar alguém e, se esta era a missão, ela sabia que fracassaria. Os seus olhos gentis, doces e inocentes se encheram de lágrimas, sem que ela ao menos soubesse o que eram. O seu grande coração se apertou tanto que quase entrou totalmente para dentro do peito. "Não chore, criança" disse o gigante escuro, levantando-se do curto período de descanso. "Um dia nos encontraremos de novo. Do outro lado do abismo" disse ele. E, pouco antes de desaparecer, ele lhe sussurrou o seu nome. 

A menina chorou de medo e ansiedade. "Gigantes não existem e eu nunca vou ter que contornar encosta nenhuma" repetia ela para si mesma, em sua inocente mente apavorada. Ela olhou para o céu em busca das suas amigas estrelas e viu um punhado de pintas prateadas no céu, mas não reconheceu as suas companheiras. Ela olhou em volta, sob a penumbra do luar, e se viu em um local sujo e sombrio. De repente, ela via o mundo com olhos diferentes. Talvez fosse assim que o mundo realmente era ou talvez fosse assim que os outros viam o seu redor, mas ela nunca vira antes. A rocha sob o seu corpo não era, na realidade, uma rocha, mas um longo e esburacado tronco de madeira, resquícios do que fora um dia parte de uma árvore. O cheiro da noite, uma mistura de grama molhada, pinheiro e lavanda, foram eliminados pelo odor de esgoto que corria por um pequeno riacho atrás dela. A menina levou a mão ao peito e viu que o seu enorme coração ainda estava lá, pelo menos. 

Com as duas mãos sobre o coração saltado, ela se sentou novamente no tronco, cerrou os olhos até as sobrancelhas se juntarem e os cantos dos olhos formarem rugas precoces. Ela queria que nunca tivesse sabido do Futuro pois, agora, o que ela mais temia era que ele estivesse certo. Ela teria que ficar atenta às tais perdas que viriam à frente. Ela teria que estar atenta a não se encontrar com o abismo, a não ter que se agarrar à encosta ou virar às costas a ninguém. Ouviu o chamado da mãe além do riacho e ela se levantou correndo, ainda segurando o coração aflito.

Quando chegou lá, jogou-se nos braços da mãe que cozinhava uma sopa de batatas no fogão à lenha. A menina chorou e chorou e a mãe soltou a colher de pau, agachando-se com a menina no chão. As lágrimas da filha eram como minúsculas pétalas de rosa branca assim como a sua inocência ferida. A menina lhe contou sobre o encontro com o gigante e a mensagem do Futuro. A mãe lhe espremeu em seus braços e só então, depois de a filha deixar cair todas as pétalas de sua roseira, ela lhe disse:

"Não tenha medo, meu anjo. Eu sei como é. Ele falou comigo uma vez, muitos anos atrás." E a menina olhou assustada para a mãe. "O que ele lhe disse, mamãe?" Ela sorriu e os olhos da mãe se iluminaram de amor, mais quente do que a luz da lareira que aquecia a casa rústica de pedra e madeira. "Ele me disse que eu, um dia, sentiria uma dor muito grande, que eu teria que carregar um fardo enorme, talvez mais pesado do que dez vezes o meu próprio peso, por muitos e muitos anos e que, durante este tempo, minhas costas se envergariam tanto que eu sentiria o cheiro do barro no chão ao caminhar. Mas ele também me disse que eu o faria porque aquele fardo seria mais importante do que a minha própria vida e que eu não deveria ceder à tentação de passá-lo para outro. Se assim eu fizesse, mesmo sem todo aquele peso para carregar, minhas costas, embora se endireitassem, doeriam como se mil fardos ainda estivessem lá".

"E onde está o fardo, mamãe? Eu ajudo você, eu ajudo você!" disse a menina, esquecendo-se das primeiras regras da mensagem do Futuro. A mãe abriu um sorriso para ela e disse "Querida, não tem como fugir do Destino. Mais cedo ou mais tarde, ele vem ao nosso encontro."

"Sim, ele me disse o nome dele, Destino."

"Nem sempre o que ele diz é o que vamos ver durante a trajetória. O que pode ser um fardo para alguns, não é nada, para mim. A mensagem do Futuro não é para temermos o que está por vir, mas para termos a certeza de que, não importa quantos abismos ou fardos teremos que passar, seremos fortes o suficiente para terminarmos a nossa missão. E, quando encontrarmos o Futuro, vamos olhar para trás e ver que tudo valeu a pena."

"Mamãe, eu não quero perder você." disse a menina deixando cair mais uma quase invisível pétala cintilante dos olhos. "Faz parte da sua jornada, querida. Assim como o abismo, mas não o tema, não evite o Destino. Siga em frente e você me encontrará no Futuro." 

Anos mais tarde, a noite ficou mais escura e os pássaros não apareceram para cantar ao amanhecer. A menina já crescida, chorava sobre a sepultura recém coberta no chão e os dias seguintes foram se tornando cada vez mais longos e difíceis. Ela foi levada para a casa de parentes onde foi cuidada por um tempo, mas não era feliz. Tentou tudo o que podia para evitar a dor da solidão. Tentou se relacionar com os primos e vizinhos, depois, candidatou-se a vários trabalhos, ela só não podia pensar em voltar para a casa e ficar lá sozinha com a sua dor. 

Aos poucos, ela parou de ir ver o por do sol, não olhava mais para as estrelas nem sentia-se confortável com o próprio corpo. As pessoas também não a levavam à sério. Embora ela fosse inteligente e criativa, não a deixaram lecionar na escola infantil, nem trabalhar na biblioteca, ou na farmácia da cidade vizinha e ela acabou voltando para a aldeia onde descascava as batatas e ajudava na cozinha da taverna. 

A menina crescida, então, isolou-se de todos, fechou-se na cabana e ali ficou. Vizinhos vieram ajudá-la com mantimentos e roupas, mas ela não abria a porta. Ali, ela encontrou livros velhos e vários diários da sua mãe morta. No começo, a menina não os abriu, mas os dias foram passando e, perdida em sua dor, ela pegou o velho e pesado diário em suas mãos e começou a folheá-lo. 

Por dias, ela leu a angustia da mãe ao dar a luz a um bebê prematuro e com um coração grande demais para o pequeno peito. As páginas eram cheias de dor e amor, fortes e úmidas, como rochas de um desfiladeiro. Mas havia também algo grandioso naquela leitura. A mãe havia descoberto uma maneira de a filha sobreviver à anomalia. Quando a menina crescida começou a ler sobre as descobertas da mãe, bateram na porta da cabana. Era um rapaz todo sujo e machucado que havia se perdido na floresta. 

A menina crescida o deixou entrar e cuidou dele por alguns dias. Curou os seus machucados, deu-lhe de comer e abrigo. Quando ele estava forte, ele lhe disse que deveria voltar para casa e perguntou se ela queria ir com ele. Por mais que ela quisesse, a menina crescida não queria deixar a casa da mãe, os livros e os diários dela. Eram tudo o que lhe restara. O rapaz, então, ofereceu-se para ajudá-la a carregar os livros. Juntos, fizeram várias sacolas de pano onde colocaram todos os livros que ela queria levar. Ficara pesado demais, ainda mais para a condição física dela. Construíram, então, um carrinho de mão e colocaram os livros e diários dentro dele. Se cada um puxasse em uma das pontas, seria possível fazer a viagem de dois dias até a casa do rapaz.

A menina crescida apagou a fogueira, fechou a porta da cabana e seguiu com ele. Viveram juntos por alguns anos e os livros acabaram em um canto da casa. Somente quando ele também morrera, ela se voltou para o seu habitual canto solitário e lá terminou a leitura sobre a descoberta da mãe. 

Remédios caseiros e técnicas de massagem que ela inventara eram descritos em detalhes em dezenas de páginas. A descoberta da mãe fez o bebê prematuro sobreviver à anomalia cardíaca. Foi, só então, que a menina crescida se deu conta do tempo que perdera. Ela tinha que passar aquilo adiante e salvar crianças como ela. E, mais uma vez, ela se viu em uma jornada difícil, mas recompensadora. Ela se tornou o exemplo vivo da descoberta da mãe e, por anos, as técnicas de uma humilde camponesa foram adotados na aldeia e nas aldeias vizinhas e o hospital recebeu o nome das duas.

Quando a menina crescida tornou-se velha, ela encontrou uma jovem bonita cujos olhos eram azuis brilhantes e entusiasmados. Ela era uma das crianças que a menina e a mãe ajudaram a salvar. Mas, mais do que isso, ela trazia uma mensagem. "Obrigada por não ter caído no abismo" e, então, a menina sussurrou o seu nome em seu ouvido, pouco antes de a menina velha fechar os olhos para sempre. "Futuro".

Poucos suportariam saber o futuro sem querer alterá-lo, por isso, ele é desconhecido. Apenas aceite os desafios do presente e faça o seu melhor para superá-los. No futuro, você verá que tudo valeu a pena.

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